Rádio Marginal

04/05/12

Um relato

Ao blog chegam depoimentos assim, sentidos, firmes, sinceros. Para que conste. E eu, só me cumpre transmitir o que me enviam. Pelo companheirismo, verdade e cumplicidade em ser o escolhido para o transmitir. Outros tempos, por vezes enviesados por politicas obscuras e enegrecidas por fumos do abastardamento do mais pequeno. Mas que nunca foram desprendidos ou atropelados por terem almas sãs. Jovens com pouco ou nada mais de meia dúzia de anos que estes amigos que faziam num atirar de rebuçados. Soubessem eles ou não de politicas. Bastava-lhes o calor humano, a ousadia de dar, de se darem e de querer ser. E davam, e eram. Nada disso consta na história de outros tempos, de outras gentes. Gentes que queriam e não podiam, gentes que atravessaram o tempo sem fama nem glória. Gente apenas. Hoje irmãos.
Muito haveria que dizer destes rapazes feitos homens sem o desejarem. Mas isto me basta.
Obrigado
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Para os meus amigos de Moçambique. Depois da Mirene falar em fé e esperança lembrei-me de vos trazer este relato, na primeira pessoa, que recebi de um velho amigo/companheiro.
Mário

---  Quando em 1972, cheguei a Moçambique para dar continuidade ao cumprimento do meu serviço militar, não parei de aprender com tudo que me rodeava. Os meus companheiros modificaram o seu trato, a deslumbrante beleza das paisagens fascinavam, a temperatura da água do Índico era algo que eu nunca tinha vivido.
Poderia descrever muitas mais situações, que muito contribuíram para o meu crescimento como homem.
De todas as situações, a que mais me marcou, foi sem dúvida alguma, a qualidade humana do povo Moçambicano em geral, e em particular as gentes do mato. Estes últimos, sendo Macuas, Macondes ou de qualquer outra etnia, eram de todos, os mais próximos das suas origens. Foi com estes, que mais convivi e aprendi. Pessoas muito boas - Ainda pouco contaminados pelo desenvolvimento civilizacional.
Num misto de saudade e tristeza - Recordo aquelas crianças que viviam quase em permanência connosco. Só iam dormir a casa. Refiro-me a miúdos cujas idades estariam compreendidas entre os oito e doze anos mais ou menos.
Estes meninos, mediante um pagamento justo e digno, tratavam-nos das roupas. Lavavam-na e passavam-na a ferro. Se ficava bem ou mal, pouco importava. Ficava sempre o melhor que cada um era capaz de fazer.
Dedicavam muito gosto e carinho no que faziam.
Eram tratados como elementos daquela família militar.
Nunca vi uma criança ser maltratada, ser explorada nem alvo de palavras menos corretas por alguma tarefa menos conseguida.
Quando eu era criança de escola, se por estupidez, um adulto atirasse um ou dois rebuçados para o nosso meio, a confusão era total. Depois de fortes disputas, os rebuçados ou fragmentos deles, iam sempre parar às mãos dos mais corpulentos e violentos.
Nos aldeamentos de Moçambique, nas horas das refeições tínhamos sempre muitas crianças com latas vazias de fruta em calda, junto às nossas tendas de campanha.
Dependendo do espaço da barraca, podiam ser de um a quatro elementos.
Os miúdos eram muitos mais.
Quando vínhamos com a nossa lata de comida, repartíamos com o nosso miúdo. Este começava a distribuir por todos os outros.
Como ali não se dava a multiplicação da comida - Pela primeira vez que assisti a isto, tive a curiosidade de ir ver com o que ficou aquele a quem eu dei. Não fiquei espantado! Era o que eu já imaginava, todos tinham um bocadinho e a lata dele estava praticamente vazia.
Repeti mais duas vezes. Veio comida que deu para todos.
Os meus colegas fizeram o mesmo. Isto foi do conhecimento do capitão.
Ficou muito contente e orgulhoso dos militares que tinha debaixo do seu comando.
No mato, tínhamos pequeninos seres miseráveis, com atitudes de homens, humanamente muito bem formados.
Aqui, temos altos seres abastados, com atitudes de meninos invejosos, maldosos e cruéis.
Se algumas dúvidas existissem, teriam sido desfeitas pelas recentes e ordinárias atitudes daqueles que há décadas são donos do nosso/deles querido Portugal.
Obrigado - Amigos.

2 comentários:

Mário Relvas disse...

Obrigado Alikas pela tua disponibilidade em publicar um texto simples de um militar Comando que rumou a África aos horrores da guerra e viu a beleza na simplicidade dos meninos e do povo de Moçambique.
MR

Anónimo disse...

Sempre disse que de todos os povos das "antigas colónias Portuguesas" o Povo Moçambicano é o mais simples e amigo. Pude constatar isso em diversas ocasiões a última em 1982-1983. E notem que nenhum Povo se pode ou deve confundir com as políticas ou os políticos desses Povos. As políticas e os Políticos mudam, mas os Povos são sempre fieis às suas tradições e raízes!
Jorge Pedroso.